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Mulher, mãe, psicopedagoga... tantas e uma só! Única, como todas nós. A educação é paixão e auxiliar famílias nessa jornada sempre foi um prazer.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Veredas

Simplesmente foi, sem saber direito pra onde, pra longe. Lugares desconhecidos, rostos inéditos, novas paisagens...

Caminhou por horas, por dias, longos dias. A jornada parecia nunca ter fim, nem sucesso. Chorou a cada incerteza, a cada insucesso, a cada tentativa frustrada.

Buscava um lugar pra ficar, aninhada, acolhida, pra estar com quem ama e se sentir em casa.

A mente ía ainda mais longe, chegava ao futuro, voltava pra casa... saudades de tudo o que foi e do que há por vir.

Andou até os pés não aguentarem mais, até se embriagar de sol e de mar. Já não tinha condições de continuar, já não podía falar por si. Voando de volta encontrou alguém que fazia quase o mesmo e se confortou por não estar só no turbilhão.

Voltou emfrangalhos, sem saber se fazia o certo, sem querer deixar tudo pra trás: o novo e o eterno. A enfermaria cheirava a éter e nada aliviava as dores, elas prosseguiram por dias. Nos pés, na alma...

Na volta descobriu que não há mais lar onde havia deixado tudo, vive ansiosa por voltar a caminhar.

De manhã

Teve um sonho estranho, como não tinha há anos...

Acordou assustado, o frio da madrugada entrava pela janela esquecida aberta entre um gole, outro e o tombo.

Que horas? Quantos dias havia dormido? Que nada... só vinte minutos!

Outra noite em claro esperando um milagre acontecer.

Outra noite sem saber nem o que espera direito...

O que queria dizer aquele sonho? Os corpos suados numa mistura de amor e ódio não saem da mente, nem por um segundo. Por que logo com ele, a razão de tanta tristeza.

Nada poderia explicar o motivo de sonhar aquilo... a não ser a vontade de fazer parte de tudo o que ela viveu e vive sem ele. Mas se pelo menos fosse com ela...

As saudades são tantas. Agora o desejo e a repulsa se misturam em sua mente, cada vez mais confusa.

Sente os lábios ardidos como depois de um beijo bom e demorado... deve ter mordido enquanto sonhava e só.

Quem sabe mais um trago... mente pra si mesmo. De manhã, tão só..

quarta-feira, 25 de março de 2009

Nada demais.

Naquele dia não tinha acontecido nada demais. Ele tinha levantado às sete, como sempre. Às oito, estava no trabalho. Saiu pra almoçar a mesma comida de todo dia, no restaurante da esquina, ao meio dia. deixou o trabalho às 17 horas, mas antes humilhou o porteiro do escritório pra não perder o costume.

O trânsito o deixou louco, como sempre acontecia. Chegou cansado em casa, como era de costume.

Os filhos implorando pela atenção que ele só iria dar no final de semana, o cachorro que nunca viu um só sorriso do dono insistindo pra brincar, a esposa perguntando "como foi seu dia?" e ouvindo como resposta um"bem" tão vago quanto o que teria dito a um completo desconhecido que ousasse se intrometer em coisas tão importantes de sua vida.

Foi dormir às 11 horas, como sempre fazia, sem saber do que poderia estar lhe esperando.

Em sua vida vazia, ouviu o despertador na manhã seguinte, mas não compreendeu o real motivo de acordar sozinho na cama, nem de não ter os filhos à mesa do café, nem de não ver o pobre cão mendigando carinho enquanto mastigava as duas torradas costumeiras de sempre.

Continuou a rotina sem nem se perguntar onde estavam todos. Não se questionava nem se eles existiram de fato algum dia, ou se havia sido um sonho estranho.

Passou a costurar as próprias cuecas, e a comprar camisas decentes, sempre que era preciso. Ele dava as ordens à diarista que nunca teve coragem pra tocar no assunto da família.

Levantava, dia após dia... deitava dia após dia, por anos a fio... até o dia do enfarto. Morreu sem deixar lágrimas... não foi nada demais.

Interessante

Interessante é aquilo que nos chama a atenção... e Navidalha já tinha se esquecido disso.

Ela estava há dez anos casada com ele, Rolímpio: o marido exemplar (que tinha uma amante a cada verão, mas nunca deixava de cuidar das coisas). A história entre eles começou numa noite diferente, em que ela era o centro das atenções, justamente por que era diferente de tudo, era diferente do mundo...

O tempo passou e tudo ficou tão igual a tudo, as rugas, a força da gravidade, a intenção da vida já era tão outra que nem se encontrava mais no infinito de "prioridades" onde (agora) a pobre Navidalha tinha se metido.

Seu mundo girava em torno dele e dos filhos (quatro lindas crianças, três meninos e uma menina, que lhe tomavam todo o tempo com estrepolias) do almoço de hoje, da janta de mais tarde, da casa organizada, de tudo menos dela. Por isso nada que podia oferecer, nem a roupa lavada, nem a comida caprichada na mesa, nem o carinho antes do sono, nem o beijo de "bom dia" era interessante de fato...

Ela nunca se dera conta disso. Não era mais interessante...

Engraçado foi que no mesmo dia teve dois encontros com si mesma. O primeiro foi com uma amiga que lhe fizera lembrar de como era, de como tratava as coisas e pessoas, de como encarava o mundo... foi pra casa pensando em como havia mudado, mas fez questão de esquecer rápido. A experiência do dia lhe soou mais como um desabafo frustrado de uma encalhada que tentava jogar areia na sua vida perfeita do que uma verdade dura e crua.
Depois, quando já havia feito as crianças dormirem e de tudo pra apagar o que lhe haviam jogado na cara (tentando "fazer de conta" que nada acontecera e que sua rotina estava "nos eixos") ele lhe deu a bofetada fatal: ela se aproximou e deu um pitaco imbecil nas suas anotações do escritório... ele lhe perguntou, num tom um tanto áspero, se não havia nada de mais interessante a se fazer do que se meter nos assuntos de homem. Nada de mais a fezer... ela percebeu que não tinha mais vida própria, nem vontade própria, nem nada de próprio!!!

Pareceu uma grosseria, num primeiro momento... coitada, de tanto viver a vida alheia, ainda se ofendia quando lhe indagavam a respeito de sua própria existência. depois veio o tom de libetação: a partir daquele dia, ela voltaria a ser ela mesma, soberana e independente... i-n-t-e-r-e-s-s-a-n-t-e.

Não se sabe ao certo se ela conseguiu viver o seu casamento até o fim dos dias... mas que importa? O seu encontro consigo mesma fez dela uma mulher que ainda era fantástica, que ainda sabia ser, que não aceitava nada que a fizesse incomodada... Nossa... há quanto tempo já não se via no espelho frente a frente?

Encontros com os outros, ao acaso, são "lugar comum"... quando nos vemos a nós mesmos, verdadeiramente, é que vale a pena... isso sim dá história!

Navegando

Ficava ali sentada até dez horas por dia. Sua atividade favorita era conversar em chats, buscava ampliar seus horizontes, conhecer gente nova e (quem sabe?) até se apaixonar... Mal arrumava a casa, comia muito pouco, não dormia quase nada... era só ali, em frente ao computador.

Sua vida andava um tanto parada desde que se formou na faculdade de Geografia, há cinco anos. Era professora de manhã, à tarde e três noites. Tímida e solitária, não saía aos fins de semana, não encontrava com amigos e nem fazia amizades na sala dos professores. Achava melhor manter certa distância, até pra não se envolver em fofocas de corredor... colégio é fogo!

Um dia entrou em uma "sala de bate papo" qualquer, com o nome de sua cidade. Logo puxaram assunto com ela, mulheres são disputadas a tapa e ela se divertia muito com isso.
Fantasma: Tc d onde?
Atena: Ponta Grossa, ? rsrsrs
Fantasma: Podia ser de qualquer lugar :(
Atena: Brincadeira, bobo! E vc? Tc d onde?
Fantasma: PG, tmbm.

O papo ficou divertido, trocaram msn e passaram a se falar todos os dias. Como poderia haver alguém na cidade com tantas coisas em comum? Era a sua alma gêmea!!!

Marcaram um encontro um mês depois, ai que medo! Tantas histórias sobre raptos, violências, até roubo de órgãos!!!

Mas ela foi, se ajeitou com a melhor roupa e toda sua coragem e foi! O lugar escolhido era o bar mais badalado da cidade, pra ter mais movimento e diminuir os riscos.

Ela quase deu meia volta quando se deu conta de que todos os seus alunos do ensino médio também estariam lá, mas a curiosidade de conhecer o tal Fantasma acabou maior que qualquer outra coisa que pudesse sentir.

Chegou um pouco antes do combinado, estava ansiosa, pediu um Martini. Ele disse que traria uma rosa vermelha pra que ela pudesse reconhecer quem era. Não parava de olhar pra porta do bar.

No horário combinado ele entrou, com a rosa na mão e um sorriso no rosto. Ela se refez do susto, quase sem coragem, acenou. Ele disfarçou a surpresa e se aproximou. O assunto do colégio é o novo namoro da professora de Geografia com o professor de Matemática.

quinta-feira, 12 de março de 2009

Cerimônia.

Estava lá, bem ajeitado no altar, como deveria ser. "Como é bonito o Elcebíades", era o pensamento da maioria das pessoas que observavam o noivo, que a essa altura já apresentava todos os sinais de uma tensão avassaladora. "Calma, meu filho. Ficar nervoso é normal!", disse o pai de Nidrielly- o dono da fábrica e seu futuro sogro, necessariamente nessa ordem.

Normal? O quê é normal?? Quem é normal???
Vontade louca de sair dali, correndo, gritando... e quase foi, mas nisso entrou a noiva: a mais linda noiva de que se teve notícia em todas as épocas. os cabelos bem arranjados, o vestido, as flores... "como ela é linda! Como tudo está tão perfeito!".

É, Elcebíades casou. Na hora do "sim" ele ainda parou pra pensar pela última vez, exitou, mas não havia mais como fugir. Estava dada a satisfação à sociedade: agora ele era um senhor de respeito! Isso era ainda mais importante do que todo o dinheiro que teria depois dessa união...

Tudo era festa no caminho da saída da igreja, a euforia do arroz tomava conta dos noivos e foi nessa hora que Elcebíades pode ver o Crico e o Tudú, de terno e gravata, sorrindo para ele em meio aos convidados. Acenou com a mão e pensou "que me julguem, tenho meus motivos e já está feito". Em sua cabeça passou um filme com trilha sonora específica, muitas cervejas, madrugadas em claro, corpos de homens suados, plumas e gliter.

Os meninos não julgavam... só tentavam descobrir, cada um a seu modo, se quem sofreria mais seria a noiva que não conheceria nunca o amor do marido, ou o amigo que nunca conheceu como é o prazer de se amar de verdade.

Nidrielly percebeu e perguntou "quem são eles, amor?", ao que o marido respondeu que são amigos do passado. Já nem sabia quem era ele mesmo.

quarta-feira, 11 de março de 2009

A "das oito", de preferência!

Ela já acorda fingindo pra si mesma... finge que se preocupa em estar atrasada pro emprego de que ela não gosta... se pudesse, nunca mais pisava lá!

Chega e diz um "bom dia!" a todos os que encontra pelo caminho... que ironia... detesta essa gente e seus sorrisos tão falsos quanto nota de três Reais. Diz "bom dia" mecanicamente, como quem cumpre mais uma obrigação no ritual do curvamento diário.

O mês inteiro esperando o salário que nem dura uma semana, dinheiro virtual que ela só conhece no extrato do banco. O extrato, sim... no singular! Porque se tirar dois no mesmo mês, se ferra e tem que pagar um absurdo pelo trabalho que ninguém faz (vai me dizer que tem um carinha dentro da máquina digitando o texto explicativo dos seus gastos?). Tira o extrato e observa os valores que nunca segurou na mão e todos os débitos automáticos e compensações de cheques que levaram tudo o que tinha, ou que quase teve. Sorri e finge pra si mesma o contentamento de quem pagou as contas e mantém o nome limpo.

Finge que entende o problema insignificante de uma amiga, equanto mastiga o almoço no seu restaurante preferido. Finge o motivo da preferência: ela odeia a comida de lá, mas o preço...

Finge que não entende a cantada no corredor, que não foi com ela aquela bronca do supervisor, que a chefe é competente e que aquela fulana merecia a promoção... finge! O tempo todo!!!

Sempre que desabafa usa metáforas, nunca vai direto ao problema, tem medo de se expor, medo de magoar os outros e medo do ridículo que é se dizer o que vem à mente. Sempre diz tudo o que pensa na lata, só que nas entrelinhas... quase ninguém entende, mas todo mundo acaba compreendendo a seu jeito e interpretando a seu modo. Todos parecem achar que ela é sincera, que se expressa bem... mas ninguém, nem uma única vez, entendeu do que ela falava de fato.

O seu sonho era escrever novelas...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

O bolo

Jenciny estava ansiosa com a primeira visita do Astrinho (jeito carinhoso que ela chamava Astrogildo, seu novo namorado). Ela não sabia o que fazer pra agradar ao moço!

Já tinha quase três anos que ela morava sozinha na cidade, tinha vindo pra estudar e, desde então, nunca havia recebido nenhuma visita masculina no apartamento.

Resolveu fazer um bolo, pra passar o tempo e controlar a ansiedade...

Achou melhor acender o forno antes de preparar a massa, pra já ir aquecendo e adiantar o serviço. Acabou com uma caixa de fósforos até se dar conta de que acender o forno com a janela da lavanderia aberta seria uma missão impossível...

Tudo bem, forno aceso, hora da receita: bolo de chocolate! Escolha certeira porque, além de ser sua especialidade, ainda era o preferido do amado... Ah, não! o chocolate em pó acabou... bom, ela com seu jogo de cintura de cozinheira de mão cheia contornou muito bem a situação. Preparou a massa branquinha, mesmo, pensando em plantar no meio alguns pedaços daquele chocolate horrível que ganhou do seu chefe, na Páscoa... pra recheio devem servir!

Quase todos os ingredientes na bacia, ela ponderou sobre o que acrescentar antes, o fermento ou o chocolate? O fermento!!! Não tinha fermento!!! Como ela poderia ter se esquecido disso? Logo ela que sermpre que faz um bolo pra alguém fica tensa só de pensar em servir uma travessa batumada...

Desceu como se fosse uma flecha até a mercearia do Seu Jonas, comprou o fermento e quase não sentiu os três lances de escada. Já estava na cozinha: fermento em punho, na massa... a massa na forma, com o chocolate misturado, tudo no forno.

Entrou no banho pra ficar cheirosa, um jeito no cabelo, um vestidinho casual, o bolo em cima do balcão da cozinha e nada do Astrinho, quase uma hora de atraso. Tocou o telefone! Devia ser ele!!! Desde que o interfone quebrou, essa era a única maneira de avisar que se estava esperando lá em baixo.

Oi, amor... o quê? Você não pode vir? Dor de barriga??? Mas eu fiz bolo de chocolate... Não vai dar? Compreender??? Cobras e lagartos (me poupo de entrar nos detalhes sórdidos).

Fim de noite, fim de relação... fim de regime!

Pé na bunda.

É, Franscesneywa (ou Fran, como ela prefere) está sozinha denovo... mais uma dispensada no prazo de dois meses. Ela não consegue entender como se processam as coisas na a cabeça dos homens.

Na verdade ela já tentou de tudo e nada dá certo, já se fez de difícil, se entregou na primeira... ligou no dia seguinte, pra mostrar interesse, se segurou pra não ligar e nunca recebeu o telefonema dele...

Nem as horas no salão, os dias perdidos na academia ou no Centro de Estética da Riwalda dão resultado... nem as roupas que a deixam com mais da metade do seu corpo à mostra, nem as risadas escandalosas na mesa do bar surtem efeito na hora de fisgar de verdade. Por que "ficam" se não têm o mínimo interesse real???

Em todos os rompimentos ela repete o ritual: chora como uma desesperada, no primeiro instante em que se vê sozinha, coloca o travesseiro em cima da cabeça que é pra abafar e ninguém escutar o choro, depois fica parada em frente ao espelho do banheiro tentando entender como ela afugenta a todos, como ela nunca acerta o alvo, como tudo pode sempre dar errado pra ela e como sua cara inchada de chorar fica péssima!

No desespero de encontrar alguém, topa tudo o que vem pela frente. Serve o figurão da política que a trata como garota de programa, o segurança da casa de shows, o gatinho que enviou uma cantada pelo orkut, o marido da prima, o coroa desesperado do site de relacionamentos, aquele colega de trabalho com fama de galinha, o cara que arrumou o encanamento... o que vier ela traça!

Dá errado, sempre!

Também, só ela pra insistir...

O que se processa na cabeça dos homens? Ela nunca percebeu que o problema não é com eles, nem é com ela, é com a falta de critério... critério que se baseia muito mais na imagem que se transmite ao outro do que aquilo que realmente se é...

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Ataúlpho

Ataúlpho Pontual, até no nome, seu criado! Assim se apresenta o jovem rapaz, barbeiro de mão cheia, Ataúlpho Gomes Pontual: Pontual da família de Seu Joaquim, Gomes da parte de Dona Gertrudes. Todos se esmeram com o horário, pois sabem da fama de intransigente que tem o moço, não perdoa nem cinco minutinhos.

A história de sua vida começou a ser escrita no casamento de seus pais... Gertrudes já tinha mais de três anos de casada quando conseguiu engravidar, a família toda cobrando, o Joaquim pressionando, as apostas na mesa... alguns achavam que a moça era "impossibilitada", outros culpavam o desempenho do marido. Especulações à parte, a esposa havia engravidado, finalmente! Antes tarde do que nunca!

Nove meses passados, a conta do médico bem certinha, a barriga imensa com o neném encaixado e nada! A semana passou como uma eternidade. Todos diziam que era para ter calma, que isso é normal e logo nasceria o menino. O problema é que logo passou a semana, mais uns dias e mais alguns... o parto já tinha sido ensaiado inúmeras vezes, as malas prontas, as chaves do carro bem à mão... e nada.

Engraçado foi quando completou-se duas semanas de atraso e Gertrudes eufórica fez o marido levantar-se no meio da madrugada para correr à maternidade, "eram as contrações"... eram gases! Foi piada no hospital e logo toda a pequena cidade já sabia do acontecido... uma lástima.
Três semanas e cinco dias decorridos da data limite estimada pelo obstetra e resolveram pela cesária, era impossível esperar mais!

No mais, tudo aconteceu como em qualquer família normal, exceto pelo fato de que o menino era meio devagar. Andou aos dois anos e falou aos três. Nenhum exame, nenhuma avaliação e nenhum médico encontraram problemas: era uma criança normal. Mas o fato é que tudo com ele era depois, bem depois do esperado.

O tempo foi passando e, depois de perder várias namoradas que não suportaram as horas de espera no portão - nem os atrasos que fazim perder a seção daquele filme esperado por semanas - Ataúlpho encontrou Engrácia, moça de família, muito bonitinha e doce. Namoraram por sete anos e foram ao altar.

No dia do casamento estava tudo perfeito. A festa foi tão linda que os convidados nem comentaram muito o fato de que a noiva já chorava no altar, se julgando abandonada, quando o noivo chegou (uma hora depois do combinado).

Após anos de compromissos perdidos, chegadas à maternidade com filhos nascidos e diversas demissões por justa causa (com base nos atrasos), Ataúlpho resolveu dar uma guinada e retomar as rédeas de sua vida: fez um curso de barbeiro, abriu seu negócio próprio na garagem de casa e o principal ADIANTOU seu rológio em uma hora. Nunca mais chegou atrasado a nada e ainda trepudia de fregueses "não tão britânicos" com a palqueta afixada com cuidado no fundo da barbearia, que tem os seguintes dizeres em letra dourada: "O senhor sabe que está atrasado?"

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Cheiro de sorriso

Coisas daquelas que ninguém sabe bem nem como, nem porquê...

Amor não tem textura, nem sabor. Carinho não tem barulho. Saudade não tem cor. Sorriso não tem cheiro...

Maria só percebeu que os sentidos não têm lá muito sentido no dia em que entrou na casa velha, quase abandonada há dois anos. Depois que a dona Luzia faleceu, ninguém mais teve coragem de entrar ali.

Maria se encheu de coragem de encarar as lembranças e entrou... abriu a porta, o rangido era o mesmo.
Abriu a janela e as cores do mundo tomaram a sala, ela quase conseguiu ver-se correndo e saltando no colo da avó. A cadeira de balanço ainda estava no mesmo lugar.

Agora ela viveria ali. Precisava de um canto para morar, há pouco voltou pra sua cidadezinha... um diploma e um regresso.

A mudança arrumada, sem mexer muito na decoração da casa, fazia sentir como se não estivesse só. Deu vontade de fazer bolo. Os ingredientes comprados na venda, como se nada fosse diferente (mesmo depois de tanto tempo), logo viraram massa no forno e delícia no prato de quem cantarolava uma cantiga esquecida nos anos fora.

Mais uma lição de dona Luzia, tão sábia, tão presente...
Amor é macio e doce. Carinho é canção de ninar. Saudade tem cor de morango. Sorriso tem cheiro de bolo...

O Salto

Sentava-se como num ritual de obrigação, a mesa mal posta pro café da manhã apressado, olhava pro pão "dormido" e nem tinha muito apetite. Na verdade não tinha nem tempo de lembrar como foi bom estar ali, um dia... não era aquela mesa, nem aquele café solúvel, nem a margarina de semanas.Quase nem se lembrava mais do sabor da manteiga no pão quente.

Tomava o primeiro ar do dia já na rua, na correria nunca podia abrir a janela do apartamento minúsculo, escuro, sem nada de pessoal. O ônibus lotado, o balcão da loja, gente que veio "só dar uma olhadinha", a comissão pequena, a louça pra lavar e mais um final de semana já estava chegando. Era sexta-feira, novamente.

Se perdeu no horário enquanto pensava na rotina, saiu correndo e se pendurou no cano da condução, abriu a porta pesada, abriu o caixa, cupriu seu ritual. Cumpriu o horário. O corpo cansado de um dia daqueles, de uma semana inteira, de uma eternidade!
Uma cervejinha? Hum, quem sabe? Já estava lá: o bar...
As pernas frágeis da mesa de ferro sem equilíbrio nas pedras da calçada, as colegas de trabalho que não eram amigas, o pandeiro que batia uma música que ela detestava, a paquera com o cara que não era aquele... o toque que não deu arepio, o abraço que não deu amor, os beijos que não têm carinho, a noite que não descançou, a manhã que não tinha ninguém.

Sentada à mesa mal posta pro café sem pressa, não tinha nem o pão "dormido" (e nem tinha apetite nenhum). Na verdade, não tinha nem nada pra querer lembrar, nem pra querer viver, nem pra querer querer.
A janela! Foi até ela e resolveu espiar o mundo... a janela aberta, depois de tanto tempo... asas pra voar.